Uma doença é considerada autoimune quando é provocada pelo próprio corpo do paciente. Existem cerca de 80, entre a artrite reumatoide, o lúpus e a psoríase. Os resultados de um estudo desenvolvido na Universidade de Stanford (EUA) podem incluir mais uma enfermidade à lista: a narcolepsia. Os cientistas realizaram um experimento com gêmeos e descobriram que glóbulos brancos anormais atacam a hipocretina, neurotransmissor ligado à vigília, provocando o transtorno caracterizado pela sonolência excessiva. A descoberta promete auxiliar em um diagnóstico mais preciso do distúrbio e novas formas de tratamento.

“Este estudo vai moldar a próxima década de pesquisas sobre narcolepsia. Ao dar uma nova maneira de pensar sobre como os neurônios nesses pacientes morrem, nosso estudo também sugere novas abordagens terapêuticas que não teriam sido consideradas se não tivéssemos aprendido que essa é uma doença autoimune”, aposta Elizabeth Mellins, professora da Faculdade de Medicina de Stanford, é uma das responsáveis pelo experimento, publicado na edição desta semana da revista americana Science Translational Medicine.

Mellins explica que o estudo se baseou em descobertas anteriores. Trabalhos que mostraram que o receptor de células T, substâncias do sistema imunológico, atacam a hipocretina. “Estudos de associação genética identificaram alguns genes como fatores de risco adicionais para a narcolepsia, e esses incluíram um gene receptor de células T. Nosso trabalho, que focou nessa célula, traz a evidência mais forte até agora de uma atividade do sistema imunológico como causa dessa doença”, destaca.

Para o experimento, os pesquisadores analisaram gêmeos, sendo um irmão narcoléptico e o outro saudável. Por meio de exames em laboratório, eles observaram que apenas os gêmeos doentes tinham células T reativas no sistema imunológico. “Elas produzem mediadores inflamatórios (interferon gama e TNF alfa) quando expostas à hipocretina. Isso nos mostra que o sistema imunológico está envolvido na doença, mas nós ainda não sabemos os eventos moleculares específicos que apontam o desenvolvimento dessas células T com a perda de células neuronais, que caracteriza a narcolepsia”, pondera Mellins.

Outra evidência analisada pelos pesquisadores foi um surto da doença, em 2010, na China, causado pela vacinação contra o H1N1, um subtipo da gripe suína. Os cientistas explicam que uma substância existente na vacina reagiu de forma semelhante à das células T reativas, combatendo a hipocretina. Dessa forma, provocou a narcolepsia nos imunizados. “Muito provavelmente, o adjuvante (matéria-prima da vacina) AS03 foi a principal razão pela qual houve casos de narcolepsia após a vacinação, que impulsionou a resposta imunitária do corpo de forma errada, fazendo com que as células T reagissem e atacassem (a hipocretina)”, destaca. O processo de autocombate é chamado de mimetismo molecular.

Exames
Para os cientistas de Maryland, as descobertas — de que a narcolepsia é uma doença autoimune e que o mimetismo molecular pode ser provocado pela vacina H1N1 — vão auxiliar em estratégias diferentes de combate à doença. “Podem levar a novos tratamentos, como terapia específica de células T”, projeta Alberto De La Herran, um dos autores do estudo e professor da Faculdade de Medicina de Maryland. Mellins também acredita na possibilidade de surgimento de um novo tipo de diagnóstico. “Esse estudo vai provavelmente levar a um exame de sangue que poderá nos ajudar a identificar indivíduos afetados mais cedo. Se pudermos fazer isso antes da perda completa das células, seria possível, quem sabe, reverter o processo, mas, é claro, precisaríamos diagnosticar isso bem cedo”, declara.

Neurologista do Laboratório do Sono do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, Rosa Hasan diz que a narcolepsia é uma doença de difícil diagnóstico. “Não podemos analisar a fundo o cérebro de alguém em busca da hipocretina. Conseguir um exame de sangue que pudesse mostrar por meio dessas reações imunológicas a reação do linfócito à hipocretina e, assim, ter a comprovação da doença seria de extrema ajuda”, declara.

Hasan não acredita que novos medicamentos possam surgir da pesquisa americana, mas ressalta que a comprovação da doença como autoimune contribuiu para combatê-la. “Já temos alguns tratamentos para a narcolepsia com o uso de imunoterápicos. Diagnosticar uma pessoas no começo da doença é difícil, mas, com certeza, isso pode contribuir para técnicas mais eficientes contra doenças relacionadas ao cérebro, um órgão muito complexo”, completa.

Próximas etapas
Os pesquisadores de Maryland  darão continuidade ao estudo. Pretendem reunir mais dados que possam auxiliar a decifrar a narcolepsia e mostrar outras causas ligadas ao desencadeamento da doença. “Estamos apenas vendo a ponta do iceberg, há muitos outros aspectos de que ainda não temos conhecimento. Não sabemos qual é o papel das outras células do sistema imunológico no desenvolvimento desse distúrbio”, exemplifica.

Hasan  explica que a ciência sabe que narcolepsia pode ser genética ou provocada por infecções. “Claro que devem existir outras substâncias relacionadas também à produção da hipocretina  no cérebro e ao funcionamento do sistema imunológico, que é muito complexo e merece a atenção de pesquisadores”, ressalta a neurologista.

 

Fonte: Correio Braziliense